terça-feira, 19 de outubro de 2010

As eleições e a vitória da ideologia familista cristã

As eleições e a vitória da ideologia familista cristã

Por Alípio de Sousa Filho
Sociólogo, professor da UFRN. Editor da revista Bagoas.


            Mais uma vez, nas eleições nacionais, entra em cena a
ideologia familista cristã. De natureza conservadora, para esta, a
família somente pode ter existência na forma do casamento entre homens
e mulheres, não se tolerando a ideia de família homossexual,
homoafetiva ou gay, concretizada pela união de dois homens ou duas
mulheres. Até mesmo o termo casamento vira objeto de disputa, não se
admitindo aplicar a gays, lésbicas e transexuais. Não é por outra
razão que, quando se fala da reivindicação ao reconhecimento dos
casais lésbicos ou gays, insiste-se em precisar que se trata de
reconhecimento de "união civil" de pessoas do mesmo sexo. O casal
heterossexual não apenas seria o único modelo para o qual se tornaria
possível falar de casamento, mas constituiria também a experiência
única de composição da família, e esta devendo ainda assegurar que
nela não se pratique o sexo antes e fora do casamento e o aborto. No
familismo cristão, gays, lésbicas e transexuais são seres aberrantes,
que não merecem a institucionalização de direitos, e o aborto é pecado
e crime. No Brasil, leis e políticas que implementem direitos LGBT e
políticas que contemplem o aborto são tomadas como afrontas à
propalada família brasileira, e esta pretendidamente uma "família
cristã".  É bem fácil de enxergar que o familismo cristão é
conservador e homofóbico. Nestas eleições, a atuação de bom número de
igrejas cristãs tem constituído verdadeiro cerco em volta das
candidaturas presidenciais.

            Para prejuízo geral, a luta por vencer tem tornado Dilma e
Serra reféns dessa ideologia, produzida pela máquina das igrejas
cristãs de todos os matizes. Em nome do pragmatismo político ou das
estratégias do marketing, que colocam a ação política sob o signo da
dicotomia maniqueísta ou do vale tudo, os dois candidatos rebaixam
suas próprias visões pessoais e de seus partidos, pois, não é de se
acreditar que pensem o que estão dizendo nas entrevistas, em seus
programas políticos, cartas ou documentos que assinam. Fazendo
concessões ao familismo cristão conservador, os dois, com poucas
distinções, deixam a sociedade escravizada ao seu próprio
obscurantismo, quando tinham o dever político de enfrentá-lo,
desafiá-lo, contribuindo com avanços culturais, que, até aqui, a
sociedade brasileira quase inteira ignora. E aqui vale destacar que,
de minha parte, não se trata de tomar um ou outro candidato como
vítima ou algoz, menos ou mais cúmplice da ideologia familista cristã
ou até mesmo menos ou mais seu manipulador. Fora do maniqueísmo das
paixões políticas (muito em alta no momento!) e da lógica empobrecida
do pragmatismo (não é pragmático discutir temas para perder, melhor
esconder posições e ganhar!) – formas autoritárias da política –,
trato de chamar atenção para o dano político e cultural que se produz
ao se perder a chance de enfrentar, mesmo com diferenças, o
conservadorismo que amanhã atrapalhará o vencedor que pretenda
emplacar transformações, e que já atrapalha avanços que a sociedade
brasileira não pode mais continuar negando ao segmento LGBT e de
mulheres, que, embora minorias políticas, são numericamente
importantes segmentos sociais.

            Nessas eleições, por temor de enfrentar o familismo
cristão conservador, a questão gay não aparece nos programas
eleitorais de nenhum dos candidatos, não é discutida, e o tema do
aborto virou motivo de chantagem, ingrediente eleitoreiro. O medo de
enfrentar o poder eleitoral das igrejas conservadores (algumas com
práticas que são verdadeiro terrorismo da palavra!) tem deixado os
candidatos, neste segundo turno, inteiramente prisioneiros de posições
acanhadas que só acanham a sociedade brasileira. Os discursos dos
candidatos ou daqueles que os apóiam referem-se a esses temas como
"coisas sem importância", "baboseira", "política do submundo",
"baixaria", "questões secundárias", entre outras expressões, revelando
o quanto, em suas concepções, a política é compreendida como a esfera
de coisas cuja importância não torna possível a ocupação com temas
"menores" como os direitos civis de gays, lésbicas e transexuais ou a
questão do aborto. Mesmo a alusão a que alguém seja gay ou lésbica é
tratada como "acusação", "calúnia", numa clara revelação que se tem a
homossexualidade como um atributo negativo. Do contrário, por que
tomar como calúnia ou acusação a referência (verdadeira ou falsa) à
homossexualidade? O modo de responder não deveria ser outro? Por que
sentir-se "difamado" por alusão à suposta homossexualidade? Na tensão
da disputa, perde-se o senso crítico e o senso comum vai ganhando a
confirmação de suas representações, preconceitos...

            Não se torna mais possível que, no século XXI, dois
importantes partidos como o PT e PSDB se permitam rebaixar seus
programas, discursos e posicionamentos à vontade de religiões
conservadoras que conduzem o país para o atraso cultural e político.
Conciliar com a vontade das igrejas cristãs conservadoras e
homofóbicas, em nome de pragmatismo político, é permitir que aqueles
que hoje exigem "compromissos de campanha" contra o aborto e contra os
direitos LGBT, e outros temas que incomodam, tornem-se amanhã, dentro
e fora do Congresso Nacional, como cães de guarda da moral sexual
vigente, os primeiros e mais ferrenhos opositores de posicionamentos e
ações de governo favoráveis a políticas públicas e direitos que não
podem mais continuar suspensos, negados, obstruídos, confiscados.

            Na disputa final, PT e PSDB deveriam dar lições de coragem
política, enfrentando a ideologia familista cristã conservadora que
faz com que a sociedade brasileira seja hoje uma das mais atrasadas em
relação aos direitos LGBT e a questão do aborto. Mas, inversamente,
assistimos os dois partidos com peças de marketing caricaturescas de
"mães brasileiras", "mulheres grávidas", "valores sagrados", "fé",
"família", visitas a templos etc. Imagens e palavras de concessões ao
familismo cristão conservador, numa clara alusão a posições
anti-aborto e contrárias a qualquer defesa de direitos que incluam as
reivindicações do segmento LGBT como casamento, adoção etc. Dilma
acaba de assinar carta em que se compromete a nada fazer que "afronte
à família", mesmo diz que alterará o PLC 122 (que trata da
criminalização da homofobia) nos pontos em que este seja "ameaça" à
liberdade religiosa e de expressão (isto é, tenta acalmar os padres e
pastores homofóbicos, que querem ter o direito de, em seus sermões,
continuar maldizendo a homossexualidade e os gays e lésbicas) e que é
"pessoalmente contra o aborto". Por sua vez, Serra traz a figura da
comovente "mãe" e sua solidária ideologia do "amor materno", discurso
subliminar contra o aborto, e, embora tenha assinado documento em que
se posiciona favorável à "união civil" de homossexuais, declara que
não é favorável ao "casamento", assunto que seria das igrejas.

            Dilma e Serra deveriam ter a coragem de desafiar a
ideologia familista cristã numa prova de coragem para governar uma
sociedade que não pode ter no seu Estado um lugar de atuação de
religiões, mas um espaço laico. Única possibilidade de elevar a
própria esfera política à posição de esfera na qual não se toma
posições baseadas em crenças ou critérios religiosos, mas a partir de
critérios racionais, públicos e políticos. Todavia, escondidos nas
razões do pragmatismo político-eleitoral e submetidos à ideologia do
marketing, que, contemporaneamente, substitui a própria política, as
duas candidaturas rebaixam seus propósitos e deixam-se derrotar por um
familismo homofóbico e conservador que, qualquer que seja o resultado
eleitoral, já pode comemorar sua vitória.

Um comentário:

DE-PROPOSITO disse...

Deambulei por aqui.
E desejo felicidades.
Manuel