É tarde. Tarde de um domingo sem sol, de um tempo que chove sem parar desde o sábado. Tarde fria, chuva fina, canta uma canção dos anos sessenta que ela aprendeu a gostar pelo gosto de sua mãe, jovem mulher, fraca e forte, guarda de sentimentos aprisionados pelo casamento dela, que de tão errado um dia deu certo. Tarde de pensamentos tortos e tortuosos, de reorganizar a vida, e nada melhor que um armário na frente de uma mulher para reorganizar os pensamentos.
E assim encontra-se ela, parada, estática, olhando firmemente os livros, revistas, bibelôs e badulaques que estão agora neste móvel -imóvel velho como a casa, incrustrado nesta, que já se encontrava lá quando ela chegou, e que por já ter um móvel que lhe servisse de guarda roupas, usou-a como estante, colocando lá seus preciosos livros empoeirados, seus bibelôs de longa data, sua televisão companheira de muitas noites e seus sonhos, todos guardados e empacotados para quem sabe um dia, tirá-los de lá, limpar-lhes a poeira e dar-lhes vida e liberdade.
Organizar a estante é uma forma de organizar a vida, ajustar os pensamentos, reenquadrar os acontecimentos, destinar energia para alguma coisa que ela tem controle, tentando modelar o que ela não tem controle. Ela sabe, já leu diversos livros de psicologia, já tem empiricamente tratados de ordem, é prática, pragmática racional e vazia. Pensa que sabe as respostas, pesquisa quando sabe que não sabe as respostas, mas nunca fica satisfeita com um não sei. Tem opinião formada para tudo, é arrogante e arredia, corajosa e covarde, mas não sabe arrumar a estante. Continua lá, parada, olhando os livros cheios de histórias e de mundos que ela já visitou zombarem de sua pasmácia, da sua falta de ação. Ela, uma mulher tão destemida, que já largou tudo e todos para o ar, para seguir seu coração, quando sua razão e sua intuição o diziam contrário, ela que esbraveja, briga, luta e nunca desiste, está agora estática como o móvel-imóvel na sua frente, olhando sem saber o que fazer.
Então ela faz o que sempre fez na vida, quando algo a faz covarde: não pensa, começa. Uma jornada de mil léguas começa com o primeiro passo, leu algum dia em algum lugar. Já que não sabe bem o que fazer, tira tudo da estante, joga tudo no chão, violenta o bastante para fazer barulho, cuidadosa o bastante para nada quebrar ou destruir. Lágrimas, espirros e pó, muito pó, podem ser vistos no quarto, mas não tem ninguém lá, além dela e da sua solidão para ver. Solidão que a acompanha, mesmo cercada de seres. E ao terminar a retirada, vê a estante, vazia como ela, com os livros e sonhos espalhados no chão, a seus pés, e o que ela tem que fazer agora é separar, catalogar, reorganizar e preencher os espaços vazios do móvel, para que se sinta novo, de novo. Enquanto separa os livros por assunto, pensa na sua vida, no vazio que se tornou, dos dilemas que enfrenta, nas ações não reconhecidas, nas verdades não vistas, nos anseios não supridos, na bobagem que fez. E assim, saturada pelo pó que sabe, a deixará uns dois dias doente pois a ele tem alergia, continua a organizar, espirrar e chorar, pelo tempo perdido, pela bagunça que se encontrava aquela estante e pela bagunça que se encontra sua vida.
Terminada a tarefa, a estante está arrumada. O rosto inchado pelo choro e pela reação alérgica. O corpo cansado do esforço físico. As mãos doloridas da tarefa doméstica. A cabeça a mil, com planos alfa e beta em funcionamento. Sair do marasmo, não se importar mais, tomar as rédeas da vida, empurrar a vaquinha, batalhar o sustento, começar a escrever, viver.
Nada como uma estante na vida de uma mulher.
*Denise Guerra Wingerter, bacharelanda em sistemas de informação pela Universidade Potiguar, amante da leitura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário